Falaremos aqui sobre a bela ciência da Economia da Saúde, utilizando o Zolgensma como fio condutor e com uma abordagem que pretende levantar mais perguntas do que respostas, já que acredito que seja a única maneira não dogmática de se tratar de um tema tão incerto.
Recentemente, em 2020, foi aprovado pela ANVISA o Zolgensma, ou se preferir, o Onasemnogene Abeparvovec-xioi, apesar de achar que ninguém preferiria um nome desse. Esse medicamento é usado para Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma doença genética rara, que atinge em torno de 1 em cada 10 mil bebês no Brasil, causada pela incapacidade do corpo em produzir uma proteína essencial para a sobrevivência dos neurônios motores, afetando todos os músculos do corpo e invariavelmente levando a fraqueza muscular, atrofia, paralisia e morte. Os afetados pela AME do tipo I, a mais comum, tem uma expectativa de vida inferior a 2 anos de idade.
O Zolgensma entra na revolucionária categoria das terapias gênicas, que de modo geral, podem ser utilizadas para curar doenças genéticas através do emprego de um vírus não patológico que entrega um gene funcional dentro do núcleo das células, substituindo o gene mutado. Uma espécie de “transplante de genes” onde um vírus é “programado” para ser o “cirurgião”. Há inclusive um forte debate ético com relação a possibilidade de utilização desse tipo de técnica para engenharia genética, melhorando características indesejadas dos seres humanos. Assustadoramente inovador, não?
Mas a inovação vem com um preço que às vezes pode assustar. Pelo singelo valor de 5,7 milhões de reais você pode adquirir a pequena ampola de 5,5 ml e, após uma única aplicação, ver seu filho recém-nascido deixar de ter uma agonizante vida de no máximo 2 anos para poder ter uma vida normal. Por óbvio, grande parte das pessoas não pode adquirir esse medicamento, e a pergunta que fica é: como decidir se essa caríssima, porém revolucionária, tecnologia deve ser fornecida no SUS?
Nem pense que a resposta para uma pergunta tão complexa é a de que o SUS deve fornecer esse tratamento independentemente do preço. Políticas públicas de qualidade não partem de mentes revolucionárias. É preciso entender que durante muitos anos o tratamento disponibilizado aos pacientes foi limitado pelas próprias descobertas humanas. Antes da década de 60, por exemplo, antidepressivos e antineoplásicos eram sonhos distantes. Hoje, nosso tratamento muitas vezes é limitado pela quantidade de recursos disponíveis e esse é um assunto para a Economia da Saúde. Economia pode ser definida como o “estudo da alocação de recursos que são escassos e têm usos alternativos” [1]. A essência da economia é a percepção de que recursos são escassos ou limitados e que por isso há necessidade de se realizar escolhas que implicam em perdas, já que a decisão pela alocação de recursos em X consome recursos que poderiam ter ido para Y, o velho conceito de custo de oportunidade. Por exemplo, os 5,7 milhões de reais gastos em uma dose de Zolgensma para salvar uma única vida podem ser gastos em um novo tratamento para câncer de útero e tratar centenas de pacientes, ou em medicamentos básicos e tratar milhares de pacientes.
Por isso, sabemos que muitas vezes a melhor terapia não será fornecida nos sistemas públicos de saúde, simplesmente pelo custo de oportunidade dessa escolha econômica. Por exemplo, Ferraz e Vieira calcularam que se o SUS oferecesse os medicamentos mais novos no mercado para tratar de Hepatite C e Artrite Reumatoide o custo total seria de 99,5 bilhões de reais, o que correspondia a 4,23% do PIB brasileiro na época, para implantar um tratamento que atingiria somente 1% da população [2]. Ou seja, para tratar da melhor forma possível 1% da população seria gasto mais do que todo o orçamento do SUS. O custo para salvar uma vida humana muitas vezes, e infelizmente, é maior mais do que o montante que o Estado pode arcar.
Outro fator importante é que a cada ano que passa gastamos mais com saúde e um dos motores desse crescimento são os gastos com as tecnologias em saúde, que incluem medicamentos. Exemplificando, o gasto total com saúde no Brasil teve, entre 2015 e 2019, crescimento per capita de 29,3%. Uma hora não vai ter mais para onde crescer, por isso a busca por eficiência nos gastos com saúde é uma meta global e nesse caminho é necessário fazer escolhas mais acertadas, levando à seguinte pergunta: como fazer essas escolhas? Como aliar controle de gastos com evolução médica?
Ainda não temos uma resposta objetiva para isso e acredito que nunca teremos. Essa é uma ciência relativamente nova, e países usam diferentes formas para chegar a uma conclusão. O Reino Unido, através do NICE (National Institute for Health and Care Excellence) utiliza uma das mais interessantes metodologias para decidir sobre a incorporação ou não de determinada droga. Veja bem, o grande problema da comparação de medicamentos para a tomada de decisão é traduzir o benefício clínico da droga em termos econômicos, afinal o custo ocorre nesses termos. Para isso, o NICE utiliza o QALY (Quality-Adjusted Life-Year) que é nada mais que uma forma de expressar em um número a qualidade e a quantidade de anos adicionais de vida que uma droga gera. Um ano adicional de vida em perfeito estado de saúde equivale a 1, ao passo que um ano adicional de vida em um estado não perfeito equivale a um valor menor que 1.
Tendo esse valor em mãos e combinando com o custo final da droga, chegamos ao que chamamos de custo-utilidade. O NICE estabelece um limite financeiro, estimado entre 20.000 e 30.000 libras, para cada QALY ganho pela nova droga e se o custo do QALY for acima desse limite, a droga tem poucas chances de ser incorporada. Esse método é complicado, controverso e limitado, mas é atualmente umas das nossas melhores armas para tomar a complicada decisão de quando utilizar recursos públicos para tratar uma doença.
No entanto, na maioria dos países a decisão é tomada por uma série de indicadores, sem limites numéricos previamente estabelecidos, deixando a decisão um tanto arbitrária. O resultado disso é um dos debates mais interessantes e florescentes que podemos acompanhar e que em última análise vai discutir sobre qual é o valor aceitável para uma vida humana.
Ah, sobre o Zolgensma… A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, órgão que fornece os dados para que o Ministro da Saúde tome a decisão sobre a incorporação ou não do medicamento, recomendou que o Zolgestema seja incorporado no SUS. Podemos imaginar que ainda esse ano essa droga revolucionária esteja sendo fornecida no nosso sistema de saúde.
Referências
[1] Thomas Sowel – Economia básica, Volume I
[2] Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante – Octávio Luiz Motta Ferraz / Fabiola Sulpino Vieira
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