A recessão matará mais do que o vírus?

Nota do editor: esse texto foi publicado em março de 2020, ainda no início da pandemia, quando alguns diziam que a recessão gerada pela política de distanciamento social iria gerar um número de mortes maior do que o vírus de Covid-19. Como o tempo demonstrou, esse argumento estava mais do que errado.

Desde o início da pandemia tínhamos noção de que esse argumento estava assentado sobre bases frágeis. Nesse texto demonstramos isso.

.

O estudo que estão usando para sustentar a narrativa de que o isolamento “mataria mais do que o vírus” é este, publicado no ano passado, cujo resultado famoso que virou manchete foi o de que a recessão de 2014-2016 teria causado 31 mil mortes no acumulado. Nós lemos o artigo, que é bem bacana por sinal.

Porém, o que nós percebemos ao ler o artigo é que a maioria dos que estão citando seus resultados aparentemente não o leram. Deixa eu fazer um pequeno resumo do artigo: a regressão dos pesquisadores encontra 0,5 mortes por 100 mil habitantes para cada 1% a mais de taxa de desemprego. O Brasil hoje tem 212 milhões de pessoas, então cada 1% a mais de desemprego resultaria em aproximadamente mil mortes adicionais por trimestre. Nós sabemos que a diferença de mortes entre a adoção de um isolamento social mais rigoroso (supressão) e um mais brando (mitigação) na estimativa revisada do Imperial College ficou na faixa das centenas de milhares no caso brasileiro. Mesmo assumindo que a mortalidade seja bem menor do que a que eles usaram, ainda cairíamos fatalmente na casa das centenas de milhares de mortes no cenário onde não se faz nada.

Façam as contas: para que as mortes causadas pela recessão (assumindo que a pesquisa anterior esteja correta) superem a tragédia sanitária, estaríamos falando em algo como 2 dígitos adicionais de desemprego durante uma década causados exclusivamente pelo isolamento. Acreditar nisso é que soa alarmismo irracional tendo de posse as informações disponíveis. Qual é a evidência usada para se esperar algo tão apocalíptico assim?

Mas fica pior: a maior parte dessa galera não percebeu que, com isolamento ou sem, o vírus impõe um problema econômico por si só, já que ficou mais perigoso produzir e consumir em uma ampla gama de setores. Esse é um dado inexorável da realidade, que independe das vontades políticas de quem esteja no congresso ou no planalto. Parece muito pouco provável que as pressões negativas sobre oferta e demanda impostas simultaneamente pela pandemia mais letal desde a gripe espanhola não causem uma recessão grave por conta própria, mesmo que o governo não mova uma palha para tentar minimizar o caos sanitário e funerário que dela se origine.

Há ainda a hipótese do lockdown endógeno: é possível que a não-reação leve à uma recessão muito pior quando o custo se tornar evidente e as medidas menos efetivas, exigindo uma paralisação ainda mais severa da atividade econômica. Não é tão simples dizer o quanto mais de desemprego haveria no acumulado, e se é que haveria. Se tiverem algum modelo disso, favor nos informar.

Mas agora é que vem a cereja do bolo: o artigo original citado – que relaciona desemprego e mortalidade – também verifica estatisticamente que, nos municípios com melhor rede de proteção social e de saúde (despesa por habitante com Bolsa Família e saúde pública foram usados como proxy), os impactos na mortalidade causados pela recessão foram mitigados. O apêndice original traduzido (que está na imagem) inclusive coloca esse resultado como uma conclusão de destaque do trabalho. Agora fica uma dúvida legítima nossa: usando a mesma fonte que vocês estão usando, uma outra abordagem possível não seria expandir emergencialmente os gastos com saúde e proteção social para mitigar os efeitos recessivos do isolamento?

Leia também:
A explicação ortodoxa da Grande Depressão
Pactos, congelamentos e inércia: as crises dos anos 80
2011–2020: o retrato de mais uma década perdida
2010-2019: Primeira década sem recessão nos EUA

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não ficará público