Evolução, racionalidade e transitividade

Este texto se baseia neste vídeo do professor Rodrigo Peñaloza.

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Muito se critica a economia pelas hipóteses que suas teorias adotam. É preciso ter claro que é natural que empreendimentos científicos tenham modelos que eliminam o ruído presente na cacofonia de fenômenos empíricos. Em termos técnicos, a ideia é a de que nos restem apenas os mecanismos causais. Um exemplo bobo, mas útil, é ignorar a resistência do ar em um exercício de mecânica clássica. Ou seja, estamos explicitando que a sua resistência não só é negligenciável, como produz ruído aos resultados em cima dos quais desejamos jogar luz.

Naturalmente, as ciências sociais também enfrentam esse tipo de problema, dada a complexidade inerente à natureza do objeto de estudo. Assim, tem-se que a busca de explicações causais estipulam hipóteses hercúleas, uma vez que, simplesmente, há muito ruído nos fenômenos que nós buscamos entender.

Sendo assim, a economia, por ser uma ciência social aplicada que lida com a complexidade das decisões humanas em cenários de escassez, para buscar explicações com um grau de especificidade ou precisão maior, vê-se obrigada a fazer as tais hipóteses hercúleas de que alguns não gostam. Dessas foram geradas inúmeras controvérsias, mas a que eu gostaria de destacar é aquela oriunda da hipótese que gera mais desconforto entre os economistas e conflito com detratores: a hipótese da racionalidade.

Mas, afinal, o que é racionalidade para a economia? Essa pergunta é de suma importância para o bom entendimento da própria teoria econômica e de seus modelos derivados. Muitos se enganam ao supor que este conceito admite um agente frio e calculista.

A racionalidade trata, na verdade, de algumas propriedades matemáticas que nós atribuímos às relações de preferência dos agentes econômicos. Por exemplo, dado um espaço de consumo X, que representa o conjunto de todas as possíveis (mutuamente excludentes) alternativas que um indivíduo enfrenta ao tomar uma decisão, tem-se que:

x ≽ y denota que x é ao menos tão desejado quanto y. Ou seja, a pessoa prefere x a y ou é indiferente entre x e y. Chamaremos essa relação de preferência fraca.

Dessa relação derivamos outras duas propriedades:

x ∼ y se ambos x ≽ y e y ≽  x. Esse símbolo denota que x é indiferente a y.

x ≻ y se x ≽ y  mas não y ≽ x. Esse símbolo denota preferência estrita de x a y.

Definição: Uma relação de preferência ≽ em X é racional se as preferências forem completas e transitivas.

  1. Preferências são completas se para todo x, y ∈ X, x ≽ y ou y ≽ x (ou ambos);
  2. Preferências são transitivas se para todo x, y e z ∈ X, se x ≽ y e y ≽ z então x ≽ z.

Esta definição pode ser encontrada em Mas-Colell et al. (1995). Recomenda-se esse livro também pelo fato de que ao tratar da transitividade, ele comenta sobre a literatura empírica que trata sobre a existência, ou não, desta propriedade. Portanto, acaba sendo uma boa revisão sobre economia comportamental.

Tendo definido os termos, vamos explicá-los ainda mais. Os modelos econômicos tomam como primitivo que os agentes têm relações de preferência. Ou seja, eu prefiro maçãs a pêras, ou pêras a maçãs ou sou indiferente. Esta lógica se aplica a qualquer bem na economia. De onde vêm estas preferências? Pergunte aos psicólogos, sociólogos, neurocientistas e às demais áreas pertinentes. Não cabe ao economista investigar de onde vêm estas preferências, mas apenas admitir sua existência de maneira exógena em nossos modelos.

Uma vez admitidas as relações de preferências, gostaríamos de representá-las com números. Ou seja, preferir maçãs a pêras (maçãs ≻ pêras) seria análogo a dizer “preferência por maçãs” = 5 e ” preferência por pêras” = 3, por exemplo. Dadas as possibilidades e preferências de um indivíduo, aquelas representadas pelos maiores números tenderiam à maior restrição.

O motivo pelo qual isso acontece reside no excesso de desejo em comparação com a oferta de meios disponíveis [Alchian & Allen (2018)]. É esta relação de fins e meios que produz escassez no sentido econômico. No presente caso, na hora de escolher, o sacrifício mais evidente que o indivíduo tem que incorrer é o dispêndio em um dado bem. A sua restrição monetária implica em um sacrifício, e a existência de um sacrifício implica na existência subjacente de um valor econômico, que se deriva deste. Mas vale de nota que nem toda restrição, que os agentes na economia enfrentam, é de natureza monetária. Afinal, podem haver restrições informacionais, tecnológicas, temporais ou geográficas.

Se um indivíduo tiver a propriedade da completude, então para cada dois bens que apresentarmos a ele, ele sempre decidirá que prefere este a aquele, ou aquele a este ou é indiferente entre ambos. Já se o indivíduo goza da propriedade da transitividade, ou seja, se prefere maçãs a figos, e figos a pêras, então se ele for confrontado com a escolha entre maçãs e pêras, ele sempre escolherá maçãs [maçãs ≻ figo ≻ pêra]. Se as duas propriedades acima forem satisfeitas, pode-se demonstrar que podemos representar essas relações de preferência por uma função de utilidade. Ou seja, se a relação de preferência em X for racional, logo x ≽ y se, e somente, U(x) ≥ U(y). [Para saber mais sobre a teoria da escolha e decisão de consumo dos indivíduos, recomendo este link]

Muito se debateu nos primórdios da economia sobre qual seria a natureza dessa função utilidade e a conclusão a que se chegou é que o que importa para a teoria econômica é a utilidade ordinal, e não a cardinal. [Para ler mais sobre esses debates, recomendo Backhouse (2003)]. O que isso quer dizer? Quer dizer que os números da função utilidade não representam alguma magnitude real, mas apenas o ordenamento das preferências. O único fator relevante é que o número que atribuímos à utilidade de se consumir maçãs seja estritamente maior que o número que atribuímos à utilidade de se consumir pêras.

Seriam as preferências dos agentes realmente transitivas?

É preciso lembrar que essas propriedades, e por conseguinte a hipótese da racionalidade, representam formalmente um conceito econômico. A matemática do “para todo x, y ∈ X, x ≽ y ou y ≽ x (ou ambos)”, assim como do “para todo x, y e z ∈ X, se x ≽ y e y ≽ z então x ≽ z” apenas tenta ilustrar, em uma linguagem conveniente, uma ideia fundamentalmente econômica. Ou seja, em benefício de um exercício de filtragem, modelos econômicos, quando abstraem as impurezas a que nos referimos há pouco, só o que fazem é formalizar em uma linguagem conveniente o estudo dos complexos fenômenos sociais.

Para a teoria econômica, basta entender que racionalidade constitui, em essência, uma propriedade do mercado, e não dos indivíduos. Ou seja, em resposta a incentivos das instituições de mercado, consumidores e firmas são induzidos a comportamentos cuja negligência implica em “extinção”. Essencialmente, é este o argumento evolucionário de Alchian (1950), segundo o qual o mercado opera como um mecanismo de seleção, em que as firmas que não estão maximizando lucro e os agentes que não forem racionais, serão extintos do mercado.

Consequentemente, não é necessário postular nos agentes as propriedades matemáticas associadas à racionalidade. É que o economista, ao formalizar suas ideias, as representa desta maneira por uma questão de praticidade. Basta lembrar que os mercados funcionam como um jogo de horizonte infinito e cujas regras, ao menos no longo prazo, acabam por expelir os participantes de pior desempenho.

Tendo isso em vista, podemos retornar a uma questão análoga: qual é o significado econômico da transitividade? Essa questão é relevante, pois ela está intimamente relacionada com o argumento evolucionário de Alchian.

Pensemos neste exemplo inspirado em “Money Pump“, de Binmore (2008). Suponhamos que exista um agente (chamaremos-o de agente 1) que tem preferências intransitivas ou cíclicas. Ou seja, o agente tem a seguinte relação de preferência: x ≻ y ≻ z ≻ x. Usando nosso exemplo anterior, dizemos que o agente 1 prefere maçãs a figo, assim como figo a pêras e pêras a maçãs.

A grande questão é que irracionalidades são problemáticas na medida em que geram erros, e erros geram perdas, que para nosso exemplo serão simbolizadas pela perda de recursos.

Suponha que o agente 1 transaciona com um agente 2, que pode ser interpretado como o próprio mercado. O agente 1 possui uma dotação de três unidades monetárias, um figo e uma pêra, ao passo que o agente 2 tem uma maçã e zero dotação monetária. Vamos supor que as preferências estritas do agente 1 são tais que: x ≻ y + 1,  y ≻ z + 1 e z ≻ x + 1. Isto é, ele troca o bem e mais uma unidade monetária.

Da situação inicial, o agente 2 oferece uma maçã em troca de um figo. Desta transação, barganha uma unidade monetária, algo admissível dadas as preferências estipulados ao agente 1. Portanto, a primeira rodada de trocas do agente com o mercado resultou no seguinte cenário:

O agente 1 pós primeira rodada ganhou uma maçã, permaneceu com sua pêra e perdeu seu figo junto a uma unidade monetária. Enquanto isso, o agente 2 ganhou uma unidade monetária e um figo, que novamente resolveu trocar com o agente 1, mas desta vez por uma pêra. O agente 1 prefere estritamente figos a pêra, então a transação acontece. No processo de barganha, o agente 1 perde outra unidade monetária, ficando com o seguinte cenário.

O agente 1 pós segunda rodada ganhou um figo, permaneceu com uma maçã e perdeu sua pêra junto a uma unidade monetária. Enquanto isso, o agente 2 ganhou uma unidade monetária e uma pêra, que novamente resolveu trocar com o agente 1, mas, desta vez, por uma maçã. O agente 1 prefere estritamente pêras a maçãs, então a transação acontece. No processo de barganha, o agente 1 perde outra unidade monetária, ficando com o seguinte cenário.

Ou seja, o agente 1 pós terceira rodada ganhou uma pêra, permaneceu com um figo e perdeu sua maçã junto a mais uma unidade monetária, consequentemente retornou a sua dotação original de bens, mas, nos processos de barganha, perdeu todo seu dinheiro. Enquanto isso, o agente 2 ganhou uma unidade monetária e uma maçã, analogamente, voltou a sua dotação original de bens, mas, nos processos de barganha, extraiu toda a renda do agente 1.

Embora as dotações, após as rodadas possíveis de troca, tenham retornado ao estado inicial, o agente 1, dadas suas preferências intransitivas, perdeu toda sua dotação monetária e, assim, transferiu toda sua renda ao mercado sem nenhum ganho.

Então voltamos à pergunta que nos levou a este exemplo: qual é o significado econômico da racionalidade?

O significado é que se o agente 1 tem preferências intransitivas, isso quer dizer que ele é incapaz de dizer qual é a melhor alternativa sacrificada. Isto é, seria melhor sacrificar a maçã pelo figo ou o figo pela maçã? O figo pela pêra ou a pêra pelo figo? A pêra pela maçã ou a maçã pela pêra? O indivíduo 1 não consegue responder. Portanto, quando o indivíduo tem preferências transitivas, ele consegue consistentemente ser capaz de identificar a melhor alternativa sacrificada para, a partir disso, justificar o conceito de custo de oportunidade na teoria econômica. Caso o indivíduo irracional permaneça nessa condição, irá constantemente perder no jogo com o mercado.

Logo, o mercado, pelo processo de competição, serviria tal qual um mecanismo de seleção onde sobrevivem os agentes que conseguem entender de forma consistente a natureza de suas escolhas. Quando olhamos este processo pela ótica da teoria das firmas, temos a situação caracterizada por Alchian – ou seja, o mercado seleciona as firmas que obtêm lucros positivos, sendo essa a condição de sobrevivência destas, e não a condição de “maximização dos lucros”. Analogamente, os consumidores intransitivos, se não aprenderem a corrigir suas preferências, vão perder seus recursos nas trocas, sendo eliminados no longo prazo. Portanto, o que sobra é apenas o agente racional. Mas um racional que não precisa ser estabelecido a priori.

Tendo isso em vista, alguém pode perguntar: se a racionalidade é uma propriedade emergente do todo, então por que focar tanto tempo na racionalidade das partes? Para além do individualismo metodológico dos economistas, uma resposta adequada há de levar em conta uma sutileza a ser percebida no argumento do Money Pump, que legitima esse procedimento. 

Quando se fundamenta a teoria econômica nesses elos subjetivos causais como preferências e utilidade, estamos provendo uma resposta teórica funcionalista para explicar os fenômenos sociais através da escolha dos agentes. Essas escolhas são funções de objetos psicológicos, subjetivos e, por construção, não observáveis. Note que há aqui uma centralidade de uma teorização fundamentalmente psicológica, mas sem comprometimento com uma teoria ou paradigma específico da teoria. Por isso, há de se fazer essa separação da área de pesquisa do psicólogo e do economista.

Decorrentemente da centralidade dessas entidades não observáveis como preferências, meios e fins, escassez, e utilidade, então para o pesquisador só está disponível nos dados o comportamento de fato observado. Tanto é o caso, que foi a partir dessa constatação um tanto óbvio que se construiu a teoria de preferência revelada, na qual a discussão sobre preferências se torna ainda menos relevante, uma vez que a conduta do agente revela suas preferências. Ou seja, ao pesquisador basta os dados observados do comportamento, e as preferências são relegadas a um mero auxiliar teórico para fazer sentido desses.

Veja que até a segunda rodada não existe nenhuma inconsistência nas ações do agente 1, e consequentemente nada que possamos dizer que refuta o modelo de escolha racional. Entretanto, a partir da rodada 3 é que há uma inconsistência, e é justamente nesta que o agente é expulso do mercado. Essa expulsão decorre do fato de que, uma vez que o agente 1 é penalizado com a perda de seu montante monetário, por conseguinte não consegue fazer mais trocas. Mas na suposição que seu montante fosse maior, por exemplo 12 ao invés de 3,  então as rodadas continuariam até o esgotamento dos recursos, mas apenas no caso em que o agente não aprendesse com as informações. Talvez o agente não aprendeu, mas copiou de um outro participante. Perceba como não importa – para se manter no jogo a estrutura de incentivos vai fazer com que os participantes se alinhem para preferências consistentes.

Um crítico pode também alegar que esse argumento só funciona em um cenário no qual observa-se várias trocas feitas pelo mesmo indivíduo. Pois na suposição que não haja rodadas o suficientes para o indivíduo ser penalizado, então ele nunca vai aprender. Todavia, como já pontuamos, o que se observa de fato é apenas o comportamento realizado, o qual podemos modelar como sendo consequência de um problema de maximização da utilidade tomando preferências como primitivos, ou que a escolha revela por si só a maior preferência escolhida mediante uma regra de decisão qualquer.

Consequentemente, para o economista, o que se observa é comportamento realizado. Quando o agente faz apenas uma troca de uma rodada só, então pode se alegar sem problema algum que os dados providos são consistentes com o modelo. E no âmbito em que essas inconsistências podem ser mais prováveis de serem observadas, o próprio mercado elimina esses agentes da competição de modo que essa informação será irrelevante para o estado de equilíbrio.

Então, a título de aproximação, o modelo de escolha racional é satisfatório para uma imagem geral, que é simples e analiticamente tratável. É devido à complexidade dos detalhes que são acrescentados elementos, mas isso não faz com que a idealização da racionalidade seja sem valor, pois mesmo errada é um modelo útil.

Referências

Alchian, Armen A. “Uncertainty, evolution, and economic theory.” Journal of political economy 58.3 (1950): 211-221.

Alchian, Armen A., William R. Allen, and Jerry L. Jordan. Universal economics. Liberty Fund, 2018.

Backhouse, Roger E. “The stabilization of price theory, 1920–1955.” A companion to the history of economic thought (2003): 308.

Binmore, Ken. “Rational decisions.” Rational Decisions. Princeton University Press, 2008.

Mas-Colell, Andreu, Michael Dennis Whinston, and Jerry R. Green. Microeconomic theory. Vol. 1. New York: Oxford university press, 1995.

Osborne, Martin J., and Ariel Rubinstein. Models in Microeconomic Theory (‘He’Edition). Open Book Publishers, 2020.

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