Neste texto pretendo documentar e compartilhar minhas estimativas para o produto potencial brasileiro (o tal PIB sustentável, estimado pelos seus fatores de produção).
Esse trabalho torna-se possível graças aos dados disponíveis pelas Estatísticas do Séc XX, um projeto do IBGE que permite um compilado histórico de estimativas das contas nacionais, nosso PIB e seus principais componentes, assim como censos populacionais históricos. Dessas estatísticas, obtemos dados do PIB e estoques de capital detalhados em frequência anual desde o ano de 1950, permitindo combinar estes dados às contas nacionais trimestrais que usamos atualmente. Com 70 anos de dados (1950–2020), eu construo uma projeção até 2050 seguindo hipóteses de crescimento para as séries de tempo dos componentes do produto potencial, permitindo uma série temporal de 100 anos de crescimento econômico para o Brasil.
Esta postagem será dedicada a explicar alguns resultados, e não detalhar a metodologia do trabalho, uma vez que pretendo deixar todos os detalhes dos dados e contas em uma planilha de Excel ao fim do texto. Cabe lembrar que o produto potencial de uma economia é uma variável não-observável e que existem muitas maneiras diferentes de se construir esse dado.
No Brasil, o trabalho de estimar um PIB potencial acaba sendo um pouco mais complicado pelo fato de muitas séries que fazem parte da função de produção do país não possuírem uma fonte oficial com metodologia padronizada, exigindo a construção de seus componentes e adicionando ainda mais incerteza aos números apresentados. É, portanto, de bom tom mencionar alguns trabalhos feitos por pesquisadores e analistas de órgãos de maior notoriedade no país (algumas fontes públicas conhecidas são: IPEA, IFI, IBRE/FGV e a Penn World Table). Meu trabalho, portanto, é só mais uma iteração dentre outras disponíveis por alguns economistas brasileiros e vários outros pesquisadores internacionais, não se tratando de uma crítica por parte de nenhum destes.
Disclaimers devidamente feitos, podemos partir para os números.
1. A função de produção
Vamos definir nossa função de produção da maneira mais simples possível:
Aqui, Y denota produto, ou seja, nosso PIB potencial. A é uma medida de produtividade do fatores, K o fator do estoque de capital, L o fator do estoque de trabalho e α a participação de cada na produção (0<α<1).
Ao escolhermos uma forma funcional para a nossa função de produção, estamos, de cara, adotando algumas hipóteses implícitas. Duas muito importantes são que a nossa economia possui, em um agregado, retornos constantes de escala, além de omitir o fator capital humano (nível educacional e produtividade geral da população empregada), sendo portanto este capturado totalmente pelo coeficiente de produtividade dos fatores A.
O trabalho consiste em estimar cada um dos componentes da forma funcional apresentada. Na minha iteração, tentarei fazer maior uso possível de dados públicos, recorrendo minimamente a dados fechados de trabalhos acadêmicos. Opto por este caminho por dois motivos: 1. A literatura sobre o assunto é extensa, e eu não quero favorecer uma publicação em detrimento de outra; 2. Deixar a consulta deste material o mais aprazível possível, de forma que todas as contas possam e devam ser encontradas somente neste trabalho. Já que não é a minha intenção tornar este um trabalho acadêmico, apenas público e educativo, me pareceu mais razoável assim.
1.1. O estoque de capital
O estoque de capital (o K da nossa função de produção) é primariamente obtido a partir das estatísticas históricas do IBGE para o período de 1950–2000, no formato líquido e bruto. O estoque líquido de capital é aquele descontado da depreciação de máquinas, equipamentos e construções ao longo do tempo, em contraste com o estoque bruto. O estoque líquido é o que nos interessa.
Do ano de 2000 para frente, é preciso adotar um método para evoluir esse estoque de capital líquido no tempo a partir dos dados das contas nacionais. Esse método é conhecido por Lei de Movimento do Capital.
A Lei de Movimento do Capital define que o estoque de capital cresce a partir do seu estoque anterior descontado da depreciação δ somado aos investimentos em capital fixo I do período.
Ao incluirmos depreciação e investimento no nosso modelo, precisaremos encontrar os dados para estes valores também. O IBGE disponibiliza o fluxo de investimento de capital fixo de 1900–2000 em reais constantes do estoque de capital; já a depreciação, não. É possível estimá-la de forma implícita a partir dos investimentos, resolvendo para o δ da equação acima usando os dados históricos.
Importante também notar que o IBGE segrega o investimento em subgrupos de interesse, separando construção civil de aquisição de máquinas e equipamentos, e dentro de construção civil, as construções residencial e não-residencial. Exploraremos este dado para desconsiderar a construção civil residencial do nosso estoque de capital, visto que este não é exclusivamente dedicado à produção. O dado histórico sugere que a construção civil residencial corresponde a cerca de 25% do investimento médio total do capital fixo no ano 2000. Vamos explorar esse número no futuro.
Até o 2º trimestre de 2021, somos capazes de evoluir o estoque de capital da economia usando somente dados das contas nacionais. Uma maneira bastante comum de comparar estimativas do estoque de capital histórico é através do múltiplo Capital/Produto, que consiste em dividir o estoque líquido de capital pelo PIB. No gráfico abaixo, comparo minhas estimativas com as da Penn World Table (PWT) para países selecionados:
Minha estimativa em azul contrasta com um viés abaixo daquele estimado pela PWT. Isso acontece porque na metodologia deles não há separação entre investimento em construção residencial, como no meu caso. Desconsiderando isto, os números parecem bastante alinhados.
Para projetarmos esses dados durante 2020-2050, é preciso assumir algumas hipóteses. A primeira delas é a participação do gasto com investimento (FBKF) na renda. Vamos olhar o dado histórico e comparar com alguns cenários:
A segunda hipótese diz respeito ao crescimento da renda. Adotando como medida conservadora a tendência de crescimento da renda, usando produtividade do trabalho medida pelos rendimentos por hora trabalhada de 2009–2020, de 1,2% ao ano. O resultado é este:
Assim, em nenhum dos cenários o estoque de capital líquido ficaria muito diferente do seu múltiplo Capital/Produto histórico, assumindo estes parâmetros mencionados. As diferenças entre os cenários dizem respeito às condições de poupança da economia brasileira. Admitindo os balanços setoriais da economia brasileira imposto pelas contas nacionais, temos que:
Quanto maior for a poupança doméstica pública e privada ou o déficit de conta corrente, mais o país poderá investir, aumentando seu estoque de capital e consequentemente seu crescimento potencial. O crescimento historicamente baixo do capital é um grande entrave para o crescimento sustentável brasileiro, e boa parte disso se deve ao baixo nível de poupança doméstica pública e privada. Daqui em diante, optei por trabalhar com o cenário 2, que é efetivamente um cenário de status quo do nível atual de investimento como fração da renda.
O último componente pertinente do estoque de capital é o seu nível de utilização (NUCI). Esse indicador nos diz o nível de ociosidade dos vários setores manufatureiros da economia brasileira, e serve como uma proxy para o grau de utilização do capital. A FGV faz o acompanhamento deste dado desde 1980 até hoje, e a retroprojeção e projeção dos dados de 2020–2050 e de 1950–1980 eu fiz assumindo retornos graduais a uma média histórica, simplesmente.
Aqui, assumi duas medidas da NUCI, uma suavizada pelo filtro HP (λ=100) e outra com o dado efetivo. Guardarei as duas fontes da série para outro propósito mais tarde.
E, assim, finalmente chegamos à nossa medida de estoque de capital final, multiplicando o estoque de capital líquido pelo seu nível aproximado de utilização extraído do setor manufatureiro.
1.2. O estoque de trabalho
O estoque de trabalho (L) brasileiro consiste na mão-de-obra total do país ao longo do tempo. Para estimá-la, precisamos obter uma fração muito específica da população brasileira: aquela que está em idade de trabalhar e efetivamente empregada. O IBGE trabalha com algumas siglas, portanto acho didático usar um diagrama-resumo.
Dessa maneira, esclarecemos o dado que buscamos obter, que é estimar a população ocupada da economia. Para chegar lá, temos que trabalhar com as projeções populacionais do IBGE e as estimativas populacionais desde 1950 até agora. Por sorte, o IBGE mantém um grande acervo de estimativas diferentes em sua página. A estimativa que escolhi usar estará descrita na planilha. As projeções demográficas do IBGE já ilustram um fato bastante importante sobre o comportamento futuro do mercado de trabalho brasileiro, que é a queda da proporção de pessoas em idade ativa.
Com as tabelas do IBGE de 1950 a 2050, extraímos a população total e a população em idade ativa. A antiga PNAD, descontinuada em 2015, oferecia estimativas anuais da população economicamente ativa de 2000–2015; todos os demais levantamentos do IBGE anteriores ao ano de 2000 levavam em consideração somente a metodologia da PME, resumido às seis principais metrópoles do país. Por isso, eu reconstruí a série da PEA usando a taxa média de participação da PIA do período de 2000–2015. Após uma suavização das séries, este é o número obtido:
De posse da PEA, precisamos plugar esse dado agora dentro do mercado de trabalho. Como as pesquisas de mercado de trabalho mudaram algumas vezes de metodologia, comparar números absolutos da população ocupada não faria sentido. O levantamento da pesquisa mensal do emprego (PME), o que, em virtude de possuir uma representação mais limitada da população brasileira, torna mais seguro trabalhar com a taxa de desemprego (assumindo que este número entre as demais regiões do país não fossem tão diferentes) para recuperar a taxa de ocupação nacional.
Começando a partir da pesquisa mais atual, que é a PNAD contínua, de frequência mensal e que segue os padrões internacionais de coleta de dados através de entrevistas domiciliares, retropolo a taxa de desemprego até 1983 usando a variação absoluta das taxas de desemprego entre as diferentes pesquisas. De 1950 até 1983, assumo uma reversão à média de 1983–2005, de aproximadamente 12%. De 2020 até 2050, assumo uma reversão à NAIRU (taxa de desemprego natural) de 9,5%. Ficamos com este resultado para nossa série de desemprego:
Como NAIRU, assumo um filtro HP (λ=100) na série de desemprego construída.
Temos nossa estimativa de PEA e nossa taxa de desemprego (portanto, de emprego também). Agora, só nos falta o último ingrediente do estoque de trabalho: o seu preço (os salários). Aqui, temos que nos atentar para a unidade utilizada nas contas nacionais, que são reais constantes de 1995. Após combinar múltiplas fontes do IBGE, é possível construir rendimentos médios mensais efetivamente pagos de 1981 até 2020 em reais correntes (sem deflacionar). Deflacionamos até 1995 estes dados todos pelo INPC, que é o valor de referência tradicional para os salários medianos pagos no Brasil (abaixo de 5 salários mínimos). Para transformar tudo em remuneração por hora, vamos utilizar as horas efetivamente trabalhadas entre 2002 e 2020. As retopolações e projeções utilizadas para estes dados podem ser entendidas no esquema gráfico abaixo:
Finalmente (eu sei, foi custoso), chegamos ao nosso estoque de trabalho, medido em horas remuneradas a R$ constantes de 1995. Assim como no caso do fator trabalho, construí séries distintas de estoque de trabalho na taxa de desemprego efetivo e na taxa da NAIRU para diferenciar trabalho efetivamente empregado de trabalho potencial. Vamos usar essa informação brevemente.
Com isso, fechamos as etapas mais difíceis da estimação do produto potencial, que é a de construir as séries temporais de interesse a partir dos dados públicos incompletos disponíveis.
1.3. As elasticidades do capital e do trabalho e a produtividade total dos fatores
A informação mais valiosa do exercício de construir um produto potencial a partir dos fatores de produção, sem dúvida, é a produtividade total dos fatores (PTF). Este número nos permite resumir a qualidade do crescimento econômico em determinado período. Porém, a informação contida nele é uma extensão da qualidade da estimação dos fatores de produção utilizados no modelo, uma vez que se trata de um valor residual entre o PIB histórico e os fatores neles alocados. Para os anos em que temos o PIB e os fatores de produção calculados, podemos obter a produtividade dos fatores a partir da seguinte decomposição:
Dessa forma, podemos obter a PTF se soubermos a elasticidade de cada fator de produção. É por isso que trabalhar com uma função de produção que assume retornos constantes de escala é o mais tradicional empiricamente, uma vez que, assumindo que os fatores de produção são conhecidos, basta decidir a elasticidade α para obtermos a série de produtividade. Pela literatura, a participação do trabalho tende a ter peso muito maior para países em desenvolvimento – caso do Brasil. Um valor de 0.3 < α < 0.5 costuma ser o mais amplamente utilizado. Neste caso, optei pelo valor 0.4, pois coincidentemente é o que minimiza os erros quadráticos da equação acima.
Com essa elasticidade e os dados que construímos anteriormente, chegamos a esta série anual de produtividade.
Importante frisar que para a etapa de estimação da produtividade, devemos usar os fatores de produção efetivamente utilizados, e não os potenciais teóricos calculados (a partir dos filtros HP na NUCI da taxa de desemprego). Utilizaremos os potenciais calculados na estimativa final do PIB, mas para a decomposição da produtividade, precisamos dos fatores reais observados.
Para a projeção, adoto uma hipótese de que haverá algum ganho da PTF futuro pois acredito que o Brasil tenha muito espaço para melhorar ainda em sua agenda microeconômica, com uma reforma tributária e uma abertura comercial mais ampla. É muito difícil medir exatamente qual seria o efeito dessas políticas na PTF brasileira, portanto aqui vale sempre a regra de se trabalhar com cenários e intervalos de incerteza. Um exercício interessante é o de procurar o crescimento necessário da PTF que entregue uma determinada hipótese de crescimento de longo prazo para o PIB brasileiro, assumindo K e L constantes.
Também é interessante olhar como a PTF variou ao longo do tempo sensibilizando momentos importantes da política econômica brasileira, como o grande salto de produtividade após o fim da hiperinflação em 1994, ou a sua abrupta queda durante a ingerência microeconômica da Nova Matriz Econômica a partir de 2011.
2. Produto potencial e hiato do produto
Ao juntarmos todos os nossos dados, podemos finalmente comparar nossa estimativa final de produto potencial com o PIB efetivo observado nas contas nacionais trimestrais do IBGE.
Em virtude da frequência anual das estimativas utilizadas, adoto hipóteses para a distribuição dos choques de oferta durante o período da pandemia em 2020 que utilizam 85% da variação do PIB no durante o T1, T2 e T3.
A diferença percentual entre o PIB efetivo e o produto potencial é o hiato do produto. Uma etapa adicional é analisar como essa estimativa de hiato do produto performa frente a outras metodologias de estimação em estimativas econométricas a fim de testar a robustez do trabalho. Esta análise eu guardarei para textos futuros mais dedicados a análises de política econômica.
3. 100 anos de função de produção
Nesta fatia do post, apresentarei alguns gráficos e números finais da estimativa construída de produto potencial por função de produção.
Importante perceber como o crescimento potencial brasileiro se reduziu ao longo do tempo, em grande parte pela forte queda na contribuição do trabalho na economia. Isso em muito se deve ao boom demográfico oriundo das altas taxas de fertilidade (filhos/família) dos anos 50 até os anos 80. Com o rápido envelhecimento populacional, o Brasil ficará cada vez mais refém da sua produtividade para crescer.
Tomando como base a situação atual do país (sem um IVA, comercialmente fechado, baixo nível de escolaridade da população empregada e baixo desempenho educacional em métricas internacionais), há realmente muito espaço para melhorar; resta saber quando e até onde essa melhoria pode ir e o que ela significa em termos de PTF para o país. Nesta hipótese de um ganho incremental de 0,4% ao ano até 2040, o Brasil sequer entrega 2% de crescimento anual, um número bastante abaixo da média do crescimento mundial, que hoje flutua em torno de 3–3,5% ao ano.
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Conforme prometido, planilha com todas as contas disponíveis neste link.
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Publicado originalmente aqui.
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